Não há como escolher a alma, cada um de nós é exatamente o que é, uma marionete dos deuses, tudo que nos cabe é fazer o melhor de nossas vidas. Alguns escolhem lutar contra o destino, como um inimigo em um confronto bélico, exceto que o único sangue derramado é o nosso, outros o empurram como um fardo, uma pedra tão densa que parece romper todos os ligamentos do corpo. Então, têm as pessoas como eu, aqueles que o abraçam, não como um amigo, mas como o veneno que se aprende a tomar.

Não há razão em lutar contra os malogros que a vida lhe oferece, nem contra a faca aterrada sob o peito. No fim das contas, pequenas doses de veneno diária, podem torná-lo mais resistente. Odeio esta cidade e tudo que ela representa, tudo que ela me tirou ao longo dos anos, mas enquanto não houvesse escapatória, carregaria aquela pedra sem peso.

Observo o clima úmido e frio, típico do inverno, mesmo que Divine Ground fosse, teoricamente, imune a variações do clima. Os semideuses no centro andam como ratos em busca de uma função no grupo. Ninguém quer MESMO ser apenas mais um mortal medíocre, afinal de contas somos filhos dos numes que nunca deveriam ser esquecidos, mas foram. Meus primos e primas buscam, sobretudo, o estrelato, a honra, a glória, ou o lado oposto, a queda de seus pais e sua derrocada. Claro que entre o preto e branco há vários tons de cinza, mas no geral, ninguém que nasce especial quer ser normal.

Eu não quero ser normal. Mas sei que não sou, sou um agouro de morte.

Caminho em direção a uma festa que teria ali. Gosto de festas, elas costumam ter álcool para porra e álcool costuma apagar o passado, também têm gente gostosa, se gente gostosa não funcionar para me alegrar, nada funciona. Não é bem culpa minha, aprendi a viver de duas formas, na surdina e na lasciva. Claro que consigo me misturar em todos os ambientes, mas no geral, sou um poço de filha-da-putagem.

Vejo dois homens, que festa capenga. Ok, talvez eu tenha chegado cedo, mas já se passou meia hora do horário marcado. Me recuso a ser o primeiro a chegar, então espero alguns minutos, observando o moreno sexy que parece brincar em tom jocoso com seu colega, espero que seja colega.

Finalmente, sou tomado pelas vozes e sigo a multidão. Entro na festa já abordando o homem que observei. — Hey, onde eu arranjo umas cervejas por aqui?


       

Em meu âmago, três facas foram enfiadas pelas deusas do tempo, as moiras, e sua mãe o Destino — Anake. Sempre me considerei uma pessoa de sorte, mesmo com os espancamentos constantes de meu pai, quando criança, mesmo tendo que matar Auriel para a sobrevivência de meus irmãos, mesmo tendo morado na rua e passado fome, mesmo que todo o ar me faltasse e todo malogro me atingisse como fogo sob a derme, queimando de dentro para fora, ainda tinha sorte e um sorriso.

Todavia, não mais. Os bons auspícios eram pautados no ensejo de um dia com minha família, um dia onde meus irmãos, em segurança, contavam seus novos aprendizados e sua vida cotidiana. Nenhuma dessas coisas poderia acontecer se estivessem desaparecidos. Um vácuo inundou minha alma quando eu e Elizabeth chegamos da missão para Apolo alguns meses atrás e eles haviam sumido. O único outro momento em que tinha experimentado aquele sentimento, fora quando tive que matar Auriel.

Desde então, nada mais foi igual, minha dor me fazia me tornar outro. Não havia mais quem defender, nem quem apoiar, muito menos em quem acreditar, e minhas armas, antes usadas apenas para recobrir meus aliados sob meu manto de proteção, agora eram usadas para sangrar e caçar. Haviam invadido Divine Ground e tomado a minha felicidade e calma, então eu decidi que nunca mais deixaria isso acontecer.

Dia após dia, fui até as fronteiras e, mesmo que não de maneira oficial, me obriguei a lutar contra tudo que aparecesse. Não havia a costumeira piedade em meus olhos, mas uma lasciva contumaz, como se batalha me enchesse de prazer. Era a única coisa que me movia, o pó dourado que se formava quando um monstro era mandado para o Tártaro.

Estava ali de novo, caçando. Sabia que em algum lugar havia outros semideuses, oficiais de guarda dos portões de Divine Ground, mas eles falharam quando confiei meus irmãos à sua segurança, então de  pouco valiam para mim. Não os odiava, nem culpava um ou outro pelo ocorrido, mas o peso que recaiu sobre mim, me fez perceber que apenas o meu punho e o meu escudo podiam defender aqueles que amo. Existiam algumas pessoas que ainda queria que permanecessem dentro dos muros.

De chofre, a floresta parecia responder ao meu chamado bélico, seus barulhos permitiam que identificasse os movimentos. Me viro, imediatamente buscando dar um soco em meu inimigo. Paro no último instante, irritado. É apenas um semideus. — Que merda, hein, achei que ia matar um monstro agora, mas é só um gay. — Caleb Foster e eu não éramos próximos nem nada, mas você acaba conhecendo a fama das pessoas quando elas vivem tempo demais em Divine Ground, especialmente as que trabalhavam para a cidade. — A vontade de jogar uma lâmpada só aumentou. — dou risada, me distraindo.

E aparentemente, para um guarda da fronteira ele também estava bem distraído, porque duas criaturas pularam em nossa direção logo em seguida — um fauno e um centauro, que merda, hein? Eles não estavam do nosso lado? — só notei quando o fauno tentou nos atingir com sua música. A flauta até começou a tocar, e eu sabia que se ele terminasse estaríamos fodidos, porque estávamos no meio do mato com o tipo de monstro errado. É quase pior que falar mal da Taylor Swift para um milenial. Todavia, para nossa sorte, o Fauno tinha usado a flauta para outra coisa…, porque parecia entupida.

Avancei contra ele imediatamente, ativando ambas as minhas armas, o escudo, que recobriu meu corpo até a metade, e o soco-inglês, com o qual mirava um murro bem no meio da fuça do animal. Ele moveu os cascos rapidamente, esquivando do toque de meu escudo, mas eu era igualmente veloz, meu soco lhe acertou em cheio, quebrando seu nariz e deixando ambos os olhos roxos. Sorri. — Vai ser difícil lutar agora, vaca de duas patas!

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